A palavra
Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito − como não imaginar que, sem querer, feri
alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma
reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso
[5] ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um
pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra
foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque
senti no momento − e depois esqueci.
[10] Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas
para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano;
que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para
lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um
pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
[15] Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica
de Beethoven − e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre
a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído − talvez palavras de algum poeta antigo − foi despertar
melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente,
[20] num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração
do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
RUBEM BRAGA PROENÇA FILHO, Domício (org.). Pequena antologia do Braga. Rio de Janeiro: Record, 1997
O episódio do canário traz uma contribuição importante para o sentido do texto, ao estabelecer uma analogia entre a palavra do escritor e a música assobiada pela amiga.
A inserção desse episódio no texto reforça a seguinte ideia:
a intolerância leva o artista ao isolamento
a arte atinge as pessoas de modo inesperado
a solidão é remediada com soluções artísticas
a profissão envolve o artista em conflitos desnecessários