A noite dissolve os homens
A Portinari
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
Que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o tímido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda não se modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas de antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, Aurora.
Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987. “Sentimento do mundo” / Carlos Drummond de Andrade – 1ªed. – São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
Assinale a incorreta no que se refere ao poema de Drummond, considerando o contexto em que foi produzido.
É nítida a divisão do poema em duas partes distintas; uma, em que o eu lírico prega seu medo e sua desesperança; e outra, em que ele define o ressurgimento do direito de sonhar e de viver em paz.
A noite é metáfora de momentos turbulentos pelos quais não apenas passa o eu lírico, mas a sociedade que o cerca, gerando uma desestruturação geral, como pode ser exemplificado nos versos: “[...] A noite é mortal,/ completa, sem reticências,/ a noite dissolve os homens, / diz que é inútil sofrer,/ a noite dissolve as pátrias, [...]”.
O jogo antitético noite/aurora afasta e aproxima as duas faces distintas do poema, à medida que o medo, representado simbolicamente pela noite, sufoca e cega o eu lírico e o empurra ao sentido de vazio. Já a aurora é a metáfora do ressurgimento da esperança, ainda que tateando em meio a um terreno inóspito e desacostumado à luz das novas possibilidades de reconstrução.
O sofrimento, advindo da noite e de tudo o que ela representa, tem seu aspecto positivo destacado, pois é em nome dele que o homem se transforma para melhor e torna-se apto a desenvolver-se, apesar do meio cruel em que está inserido. A capacidade de adaptação do ser humano à dor e ao sofrimento pode ser considerada o tema da poética drummondiana, não apenas desta fase, mas de todas as suas produções.
O surgimento da Aurora, a quem o eu lírico se dirige com certa intimidade, remete igualmente ao surgimento de novos ideais e de novas fontes de esperança que se desenham ao seu entorno. Este poema representa a possibilidade de recuperação da alma humana, que se desespera, mas se recompõe de forma confiante. Sob esta perspectiva, tudo o que aconteceu no passado não foi em vão, já que trouxe novo significado aos momentos futuros, como podemos inferir dos versos finais, “[...] Havemos de amanhecer. O mundo / se tinge com as tintas da antemanhã / e o sangue que escorre é doce, de tão necessário/ para colorir tuas faces pálidas, aurora.”