A mim, o que mais me doera,
se eu fora o tal Tiradentes,
era o sentir-me mordido
por esse em quem pôs os dentes.
Mal empregado trabalho,
na boca dos maldizentes!
Assim se forjam palavras,
assim se engendram culpados;
assim se traça o roteiro
de exilados e enforcados:
a língua a bater nos dentes...
Grandes medos mastigados...
O medo nos incisivos,
nos caninos, nos molares;
o medo a tremer nos queixos,
a descer aos calcanhares;
o medo a abalar a terra,
o medo a toldar os ares;
[...]
Vicente Vieira da Mota,
muitos são os seus descendentes!
Tu, com rico patrão salvo
acusas o Tiradentes
Mordem a carne do fraco
teus rijos, certeiros dentes!
[...]
(MEIRELES, Romanceiro da Inconfidência, 1989, p.163-164.)
Ao utilizar o “romance”, tipo de poema narrativo curto, muito praticado no período Barroco, a poetisa investe na forma poética como elemento importante para recriar a atmosfera cultural da época.
O eu lírico explora ambiguamente a palavra “dentes” para analisar e criticar o comportamento de Vicente Vieira da Mota, um dos acusadores de Tiradentes.
A repetição do vocábulo “dentes” reafirma que entre Tiradentes e Vicente Vieira da Mota havia um pacto de feroz cumplicidade.
Por meio da ironia, a poetisa critica o fato de Tiradentes ter tratado Vicente Vieira da Mota e este utilizar os dentes restaurados para delatar seu bem-feitor.