A língua e o poeta
Hoje eu peço vênia¹ para discrepar² do grande Ferreira Gullar, que, no domingo, escreveu um artigo defendendo o "modo correto" de usar a língua portuguesa.
Longe de mim propor que o poeta, eu e o leitor comecemos a dizer “nós vai” ou “debateu sobre as alternativas”, mas não dá para comparar violações à norma culta com um erro conceitual como afirmar que tuberculose não é doença, para ficar nos exemplos de Gullar. Fazê-lo é passar com um “bulldozer”³ sobre o último meio século de pesquisas, em especial os trabalhos de Noam Chomsky, que conseguiram elevar a linguística de uma disciplina entrincheirada nos departamentos de humanidades a uma ciência capaz de fazer previsões e articular-se com outras, como psicologia, biologia, computação.
Chomsky mostra que a capacidade para a linguagem é inata. É só lançar uma criança no meio de uma comunidade que ela absorve o idioma local. O fenômeno das línguas crioulas revela que grupos expostos a «pidgins» (jargões comerciais que misturam vários idiomas, geralmente falados em portos) desenvolvem, no espaço de uma geração, uma gramática completa para essa nova linguagem. Mais do que de facilidade para o aprendizado, estamos falando aqui de uma gramática universal que vem como item de fábrica em cada ser humano. Foi a resposta que a evolução deu ao problema da comunicação entre caçadores- coletores.
Nesse contexto, o único critério para decidir entre o linguisticamente certo e o errado é a compreensão da mensagem transmitida. Uma frase ambígua é mais "errada" do que uma que fira as caprichosas regras de colocação pronominal.
Na verdade, as prescrições estilísticas que decoramos na escola e que nos habituamos a chamar de gramática são o que há de menos essencial e mais aborrecido no fenômeno da linguagem. Estão para a linguística assim como a pesquisa da etiqueta está para o estudo da história.
(HÉLIO SCHWARTSMAN, Folha de S.Paulo, 27 de março de 2012)
¹vênia = licença, permissão
²discrepar = divergir de opinião, discordar
³bulldozer = (inglês) escavadeira
Segundo o texto, o autor:
defende de forma incondicional, como Ferreira Gullar, o “modo correto” de usar a língua portuguesa.
considera que ambiguidade seria mais “errada” do que um erro de próclise porque esta não apresenta distorção na comunicação.
preconiza que uma frase com transgressões às “caprichosas regras de colocação pronominal” prejudica o ato da fala.
prega o caráter supérfluo e vão das prescrições gramaticais, linguísticas e estilísticas.
reclama da natureza complexa e enfadonha do estudo da gramática nas escolas.