ENEM 2009 segunda aplicação

A bem dizer, sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância, com uns padres–mestres a dez tostões por mês. Digo, modéstia de lado, que já discuti e joguei no assoalho do Foro mais de um doutor formado. Mas disso não faço glória, pois sou sujeito lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada. Trato as partes no macio, em jeito de moça. Se não recebo cortesia de igual porte, abro o peito: — Seu filho de égua, que pensa que é?

(...)

Meus dias no Sossego findaram quando fui pegado em delito de sem–vergonhismo em campo de pitangueiras. A pardavasquinha dessa intimidade de mato ganhou dúzia e meia de bolos e eu recriminação de fazer um frade de pedra verter lágrima. Simeão, sujeito severoso, veio do Sobradinho aquilatar o grau de safadeza do neto. Levei solavanco de orelha, fui comparado aos cachorros dos currais e por dois dias bem contados fiquei em galé de quarto escuro. No rabo dessa justiça, meu avô deliberou que eu devia tomar rumo da cidade:

— Na mão dos padres eu corto os deboches desse desmazelado.

(...)

CARVALHO, José Cândido de. O coronel e o lobisomem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. 3–5.

Quanto ao estilo e à linguagem empregada no trecho do romance de José Cândido de Carvalho, nota-se que

a

o estilo literário do autor capta as variações linguísticas do Brasil interiorano, com a utilização de sufixos incomuns na norma padrão da língua (“semvergonhismo” e “severoso”).

b

o autor evitou utilizar vocábulos eruditos e construções sintáticas próprias da norma padrão da língua portuguesa para garantir a veracidade do emprego da linguagem regional.

c

a atmosfera regional da narrativa decorre menos do emprego de expressões típicas do falar das comunidades rurais do que da descrição detalhada do espaço do romance, como em “campo de pitangueiras”.

d

Ponciano, por meio da fala “Seu filho de égua, que pensa que é?”, pretende enfraquecer a hierarquia de poder do local em que vive, torná-la mais democrática.

e

a expressão “No rabo dessa justiça” é empregada como um recurso estilístico que caracteriza a linguagem do texto como formal.

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Resposta
A
Tempo médio
2 min

Resolução

A questão pede para analisar o estilo e a linguagem empregados no trecho do romance O coronel e o lobisomem de José Cândido de Carvalho. O texto apresenta um narrador em primeira pessoa, Ponciano de Azeredo Furtado, que se descreve e narra um episódio de sua juventude.

Passo 1: Leitura atenta do texto e identificação das características da linguagem.

Ao ler o trecho, percebemos que o narrador utiliza uma linguagem peculiar. Ele se apresenta como "coronel de patente", menciona ter estudado latim ("uns latins arranhei") e discutido com "doutor formado", indicando certo nível de instrução ou, ao menos, a pretensão de tê-lo. No entanto, sua fala é permeada por expressões coloquiais, regionais e até rudes:

  • "Leio no corrente da vista" (ler fluentemente)
  • "mimoso no trato" (delicado no tratamento)
  • "Trato as partes no macio, em jeito de moça" (tratar com suavidade)
  • "abro o peito: — Seu filho de égua, que pensa que é?" (explosão de raiva com xingamento)
  • "delito de sem–vergonhismo" (ato de falta de vergonha, formação lexical criativa)
  • "pardavasquinha" (termo regional/coloquial para moça morena/parda, talvez com tom pejorativo ou íntimo)
  • "dúzia e meia de bolos" (castigo físico)
  • "sujeito severoso" (pessoa severa, formação lexical com sufixo -oso)
  • "solavanco de orelha" (puxão de orelha)
  • "galé de quarto escuro" (castigo de ficar preso no quarto)
  • "No rabo dessa justiça" (como consequência dessa punição, expressão informal)
  • "desmazelado" (desleixado, relaxado)

Essa mistura entre o formal/erudito (ou a pretensão a ele) e o coloquial/regional/rude é uma marca estilística importante.

Passo 2: Análise das alternativas à luz das características identificadas.

  • Alternativa A: Afirma que o estilo capta variações linguísticas do Brasil interiorano, usando sufixos incomuns como em "sem-vergonhismo" e "severoso". A análise do texto confirma o uso de linguagem com marcas regionais/coloquiais. "Sem-vergonhismo" é uma formação nominal a partir de "sem-vergonha", e "severoso" é uma formação adjetival a partir de "severo". Embora "severoso" possa não ser estritamente "incomum" em certos registros, e "sem-vergonhismo" seja mais uma criação expressiva, ambas exemplificam a flexibilidade e a variação linguística que o autor explora para construir a voz do narrador e o ambiente da narrativa, característicos do falar interiorano representado na obra. Portanto, esta alternativa descreve bem um aspecto central do estilo do texto.
  • Alternativa B: Diz que o autor evitou vocábulos eruditos e sintaxe padrão. Isso é incorreto. O narrador menciona ter estudado latim e discutido com doutores, e a estrutura geral das frases não foge completamente à norma padrão, embora intercale muitas expressões coloquiais. A característica é a mistura, não a evitação total do padrão ou do erudito.
  • Alternativa C: Sugere que a atmosfera regional vem mais da descrição do espaço ("campo de pitangueiras") do que da linguagem. Embora a descrição do espaço contribua, a linguagem utilizada (expressões, vocabulário, construções) é um elemento fortíssimo e talvez predominante na criação dessa atmosfera regional. A alternativa minimiza o papel da linguagem, o que não corresponde à impressão deixada pelo texto.
  • Alternativa D: Interpreta a fala "Seu filho de égua..." como uma tentativa de enfraquecer a hierarquia. Pelo contrário, a fala é uma explosão de raiva de Ponciano quando não recebe o tratamento que julga merecer, afirmando sua própria posição e autoridade (ou a percepção dela) dentro da hierarquia social. Não há intenção democratizante.
  • Alternativa E: Classifica a expressão "No rabo dessa justiça" como formal. Esta expressão é marcadamente informal e coloquial, significando "como consequência/resultado dessa punição". Portanto, a afirmação é o oposto do correto.

Passo 3: Conclusão.

A alternativa A é a que melhor descreve uma característica marcante do estilo e da linguagem do trecho: a representação de variações linguísticas regionais/coloquiais, exemplificada por formações lexicais como "sem-vergonhismo" e "severoso", que contribuem para a construção da voz do narrador e da atmosfera da obra.

Resposta Final: A alternativa correta é a A.

Dicas

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Observe como o narrador fala de si mesmo: ele usa apenas linguagem simples ou também menciona estudos e discussões formais?
Analise as palavras destacadas na alternativa A: "sem-vergonhismo" e "severoso". Elas parecem palavras comuns do dicionário padrão ou criações/usos mais específicos?
Pense no contexto em que Ponciano diz "Seu filho de égua...". Ele está tentando ser educado e formal ou está expressando raiva de forma rude?

Erros Comuns

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Não perceber a mistura de registros linguísticos (formal/coloquial) no discurso do narrador.
Achar que o uso de linguagem regional implica a completa ausência de elementos da norma padrão (erro relacionado à alternativa B).
Subestimar o papel da linguagem na construção da atmosfera regional, focando apenas na descrição do espaço (erro relacionado à alternativa C).
Interpretar mal a função da fala agressiva do narrador, atribuindo-lhe uma intenção política (democratizante) que não possui (erro relacionado à alternativa D).
Confundir linguagem coloquial/informal com linguagem formal (erro relacionado à alternativa E).
Revisão

Revisão de Conceitos

  • Estilo Literário: Conjunto de características formais e expressivas que individualizam a escrita de um autor ou de uma obra (escolha de palavras, estrutura das frases, uso de figuras de linguagem, tom, etc.).
  • Variação Linguística: Diferenças no uso da língua observadas entre falantes de diferentes regiões (variação regional/diatópica), classes sociais (variação social/diastrática), níveis de formalidade (variação estilística/diafásica) ou épocas (variação histórica/diacrônica). O texto exemplifica a variação regional e estilística.
  • Regionalismo: Corrente ou característica literária que busca retratar costumes, falares, paisagens e tipos humanos de uma determinada região. A linguagem é um elemento chave no regionalismo.
  • Linguagem Coloquial vs. Formal: A linguagem coloquial é espontânea, usada em situações informais do dia a dia, podendo incluir gírias, expressões populares e desvios da norma padrão. A linguagem formal é mais planejada, segue a norma padrão e é usada em situações que exigem mais seriedade ou distanciamento. O texto mistura esses registros.
  • Norma Padrão: Conjunto de regras gramaticais e usos linguísticos considerados como modelo de correção e prestígio em uma sociedade.
  • Morfologia (Formação de Palavras): Processos pelos quais novas palavras são criadas (derivação, composição, etc.). O uso de sufixos (-ismo, -oso) para criar "sem-vergonhismo" e "severoso" são exemplos de derivação sufixal, explorados estilisticamente pelo autor.
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Taxa de acerto
7.9
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Porcentagem de alternativa escolhida por nota TRI
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