24/7: CAPITALISMO TARDIO E FINS DO SONO (extrato)
A obra de Hobbes fornece um indício significativo da transformação que afeta tanto a garantia de segurança
quanto as necessidades daqueles que dormem. As primeiras grandes repúblicas burguesas, bem como o
Estado imaginado por Hobbes, eram baseados na exclusão – existiam para servir às necessidades das classes
proprietárias. Assim, a segurança oferecida àquele que dorme diz respeito não apenas à segurança física
[05] ou corporal, mas à proteção de sua propriedade e de seus bens enquanto ele está dormindo. E mais: a
ameaça potencial ao sono pacífico da classe proprietária viria dos pobres e dos indigentes. A relação entre
propriedade e o direito ou privilégio de um sono tranquilo tem suas origens no século XVII e permanece em
vigor nas cidades do século XXI. Os espaços públicos são agora totalmente planejados com a finalidade de
impedir o sono, muitas vezes inserindo – com uma crueldade particular – o serrilhado de bancos e outras
[10] superfícies acima do chão que impedem que um corpo humano se deite sobre eles. O fenômeno dos sem
teto urbanos, disseminado mas socialmente ignorado, é marcado por inúmeras privações, mas poucas tão
agudas como os riscos e a falta de segurança do sono desabrigado.
O desastre na fábrica de produtos químicos em Bhopal, na Índia, em 1984, expôs de forma terrível a absoluta
falta de proteção ou segurança para os mais carentes. Pouco depois da meia-noite de 1º de dezembro, um
[15] gás altamente tóxico vazou de um tanque de armazenamento mantido em condições precárias e matou
dezenas de milhares de moradores da região – a maior parte deles dormia no momento do acidente.
Outras milhares de pessoas morreram nas semanas e meses seguintes, e houve um número ainda maior
de feridos ou inválidos para toda a vida. O desastre de Bhopal é até hoje a revelação brutal da discordância
entre globalização corporativa e possibilidade de segurança e sustentabilidade para as comunidades
[20] humanas. Nas décadas seguintes, a empresa Union Carbide sempre negou qualquer responsabilidade ou
ressarcimento às vítimas, numa confirmação de que o desastre não poderia ser tratado como um acidente
e que, no contexto das operações corporativas, as vítimas eram supérfluas. Com certeza as consequências
teriam sido igualmente horríveis se o vazamento tivesse ocorrido de dia, mas o fato de ter acontecido à
noite ressalta a extrema vulnerabilidade da pessoa adormecida, num mundo do qual desapareceram ou
[25] foram enfraquecidas algumas garantias sociais. Diversos pressupostos fundamentais a respeito da coesão
das relações sociais acompanham a questão do sono – na reciprocidade entre vulnerabilidade e confiança,
entre exposição e proteção. A guarda de outros é crucial para a despreocupação revigorante do sono, para
um intervalo de tempo no qual se está livre de temores, e para um temporário “esquecimento do mal”
Jonathan Crary. Adaptado de 24/7: capitalismo tardio e fins do sono. São Paulo: Ubu, 2016.
Ao final do texto, os pressupostos mencionados sobre a coesão social atribuídos à questão do sono são construídos com base na seguinte relação de sentido:
consecutiva
alternativa
paradoxal
causal