[1] Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem
[4] o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de
um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal
tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua,
[7] não faz falta a ninguém. Aliás — descubro eu agora — eu
também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro
escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem
[10] porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas
por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões
[13] trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente
substituíveis e que tanto existiram como não existiriam. Poucas
se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber
[16] a quem. Esse quem será que existe?
Estou esquentando o corpo para iniciar, esfregando as
mãos uma na outra para ter coragem. Agora me lembrei de que
[19] houve um tempo em que para me esquentar o espírito eu
rezava: o movimento é espírito. A reza era um meio de
mudamente e escondido de todos atingir-me a mim mesmo.
[22] Quando rezava, conseguia um oco de alma — e esse oco é
o tudo que posso eu jamais ter. Mais do que isso, nada. Mas o
vazio tem o valor e a semelhança do pleno. Um meio de obter
[25] é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente
acreditar que o silêncio que eu creio em mim é resposta a meu
— a meu mistério.
Clarice Lispector. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.13-4.
Tendo como referência o fragmento acima, da obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, julgue o item a seguir.
Depreende-se do texto que o narrador escolhe contar a história da moça nordestina porque com ela ocorreram fatos extraordinários, totalmente incomuns na vida de pessoas como ela.
CERTO
ERRADO
Neste excerto de “A Hora da Estrela”, Clarice Lispector ressalta a condição de uma personagem nordestina que vive uma situação de invisibilidade social, sentimento de inutilidade e falta de pertencimento. A fala do narrador se volta a compreender e dar voz a essa personagem comum, sem grandes acontecimentos heróicos, realçando justamente o aspecto banal de sua vida. Assim, a afirmação de que ele conta a história por se tratar de fatos extraordinários é contrária ao que o próprio narrador explica: ele escolhe falar de uma mulher simples, que passa quase despercebida e que poderia ser trocada por muitas outras em sua situação. Portanto, o enunciado é classificado como incorreto (opção B).
Foco narrativo e condição social: Em “A Hora da Estrela”, a escritora Clarice Lispector emprega um narrador peculiar, Rodrigo S. M., que decide narrar a história de Macabéa, uma moça comum, quase desapercebida pela sociedade. O texto não descreve grandes feitos ou eventos extraordinários; ao contrário, ilustra a baixa autoestima e a vida banal da personagem.
Função do narrador: O narrador funciona como mediador, ao mesmo tempo que reflete sobre a própria narrativa. O interesse está em evidenciar a invisibilidade de Macabéa e a solidão humana, não em retratar acontecimentos fora do comum.