[1] Pela segunda vez, a moça tomou coragem; a pretexto de
dor de dente, conseguiu licença para faltar ao serviço. Não lhe foi
difícil descobrir o endereço da gorda e exageradamente gentil
[4] madama Carlota, atual cartomante bem-sucedida, moradora de
apartamento próprio, fã de Jesus, “doidinha por Ele”, que sempre
a ajudou.
[7] Mais falando de si mesma do que de sua “cliente”, a
cartomante concluiu: “Mas, Macabeazinha, que vida horrível a
sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que
[10] horror!” Resolveu, então, animar a pobre coitada. “Tenho grandes
notícias para lhe dar:
Sua vida vai mudar completamente! Até seu namorado
[13] vai voltar e propor casamento e seu chefe não vai mais lhe
despedir! E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela
porta adentro em horas da noite trazido por um homem
[16] estrangeiro. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verdes ou
castanhos ou pretos. Parece se chamar Hans, e é ele quem vai se
casar com você!”
[19] Saiu da casa da cartomante mudada. “Até para atravessar
a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro”.
Ao dar o passo para descer da calçada, Macabéa foi
[22] atropelada por um luxuoso Mercedes amarelo, que fugiu, sem que
o motorista prestasse socorro. Ela bateu na quina do meio-fio com
a cabeça, que começou a sangrar. Tomada por uma espécie de
[25] delírio oco, observou que havia capim na rua. “O Destino tinha
escolhido para ela um beco no escuro e uma sarjeta” como se ela
fosse “uma galinha de pescoço mal cortado que corre espavorida
[28] pingando sangue”. Só que Macabéa lutava muda. Então começou
levemente a garoar: Olímpico tinha razão ela só sabia mesmo era
chover!
[31] Os curiosos que se aproximaram nada fizeram “como
antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos
a espiavam. O que lhe dava uma existência”.
[34] “Ela se mexeu devagar, acomodou o corpo em posição
fetal. Era uma maldita e não sabia. Agarrava-se a um fiapo de
consciência e repetia mentalmente sem cessar eu sou, eu sou. Eu
[37] sou. Teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o
abraço da morte. Um gosto suave, arrepiante, gélido e agudo
como no amor. Seria esta a graça a que vós chamais Deus? Sim?
[40] Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Então ela
pronunciou uma frase que ninguém entendeu: “Quanto ao futuro.”
Vomitou um pouco de sangue. Estava enfim livre de si e de nós.
[43]Viver é um luxo. Pronto, passou.”
Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 (com adaptações).
A partir do texto acima, julgue o item.
Preserva-se a correção gramatical e o significado do trecho “a moça tomou coragem” (l.1) se ele for reestruturado como: a moça pôs-se corajosa.
CERTO
ERRADO