[1] Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das
impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente
do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era
[4] o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas
matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não
torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar
[7] gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do
caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra
verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que
[10] esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele,
assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras
embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias,
[13] para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor
setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de
prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam
[16] em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa
fosforescência afrodisíaca.
Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não
[19] podia conceber. De todas as impressões daquele resto de
domingo só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma
desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel
[22] chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito
alvas, cheirosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas
confidencialmente sobre os limosos pântanos sombrios, onde
[25] as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade.
E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas
dançaram, mas o português só via a mulata, mesmo quando,
[28] prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade, a cabecear
de sono, chamara-o várias vezes para se recolherem; ele
respondeu com um resmungo e não deu pela retirada da mulher.
[31] Passaram-se horas, e ele também não deu pelas horas
que fugiram.
O círculo do pagode aumentou: vieram de lá defronte
[34] a Isaura e a Leonor, o João Romão e a Bertoleza,
desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé da patuscada um
instante antes de caírem na cama; a família do Miranda pusera37
se à janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira
povo lá fora na rua; mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada
vira senão uma coisa, que lhe persistia no espírito: a mulata
[40] ofegante a resvalar voluptuosamente nos braços do Firmo.
Só deu por si quando, já pela madrugada, se calaram
de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu
[43] a casa.
E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que
a arrastava pela cintura.
Aluísio Azevedo. O cortiço. São Paulo: Ática, 1997.
Tendo como referência o fragmento acima, da obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e considerando as estéticas romântica e naturalista, julgue o item.
Apesar de O Cortiço ser uma obra naturalista, verifica-se, no trecho apresentado, a idealização romântica de Rita Baiana, patente na forma como é descrita pelo narrador.
CERTO
ERRADO
Neste fragmento de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, percebemos diversos traços marcantes do Naturalismo, como o enfoque nas forças instintivas e o ambiente que influencia os personagens. Embora a descrição de Rita Baiana tenha elementos que possam parecer exóticos ou atraentes, não se trata de uma idealização romântica, mas sim de uma ênfase nas pulsões, na sensualidade e na natureza (como o calor, ressaltado pelas imagens de plantas, cheiros e cores fortes). Essa abordagem evidencia a valorização do instinto e do meio, típicos do Naturalismo. Desse modo, a proposição de que haveria uma idealização romântica de Rita Baiana no trecho está incorreta.
Dessa forma, a opção correta é a ERRADA, pois a descrição da personagem, mesmo que envolva aspectos esteticamente marcantes, não a coloca em um pedestal idealizado, mas realça seu poder de sedução dentro de uma perspectiva naturalista.
Naturalismo: movimento literário que foca nos aspectos deterministas, as pulsões e a influência do meio, apresentando temas mais crus, personagens influenciados pelo ambiente e pelos instintos.
Romantismo: caracteriza-se pela idealização da figura feminina, exaltação da subjetividade e do sentimentalismo. Geralmente, há um tom de enlevo poético e de perfeição estética, distante do realismo cru.