[1] Não faz muito que temos esta nova TV
com controle remoto, mas devo dizer que se
trata agora de um instrumento sem o qual eu
não saberia viver. Passo os dias sentado na
[5] velha poltrona, mudando de um canal para o
outro – uma tarefa que antes exigia certa
movimentação, mas que agora ficou muito
fácil. Estou num canal, não gosto – zap, mudo
para outro. Eu gostaria de ganhar em dólar
[10] num mês o número de vezes que você troca
de canal em uma hora, diz minha mãe. Tratase
de uma pretensão fantasiosa, mas pelo
menos indica disposição para o humor,
admirável nessa mulher.
[15] Sofre minha mãe. Sempre sofreu: infância
carente, pai cruel, etc. Mas o seu sofrimento
aumentou muito quando meu pai a deixou. Já
faz tempo; foi logo depois que eu nasci, e
estou agora com treze anos. Uma idade em
[20] que se vê muita televisão, e em que se muda
de canal constantemente, ainda que minha
mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma
moça sorridente pergunta se o caro
telespectador já conhece certo novo sabão
[25] em pó. Não conheço nem quero conhecer, de
modo que – zap – mudo de canal. ―Não me
abandone, Mariana, não me abandone!‖.
Abandono, sim. Não tenho o menor remorso,
e agora é um desenho, que eu já vi duzentas
[30] vezes, e – zap – um homem falando. Um
homem, abraçado ........ guitarra elétrica, fala
........ uma entrevistadora. É um roqueiro. É
meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas,
falta-lhe um dente. É o meu pai.
[35] É sobre mim que ele fala. Você tem um
filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e
ele, meio constrangido – situação pouco
admissível para um roqueiro de verdade –, diz
que sim, que tem um filho só que não vê há
[40] muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta:
você sabe, eu tinha que fazer uma opção, era
a família ou o rock. A entrevistadora, porém,
insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de
rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock?
[45] Ele se mexe na cadeira; o microfone,
preso ........ desbotada camisa, roça-lhe o
peito, produzindo um desagradável e bem
audível rascar. Sua angústia é compreensível;
aí está, num programa local e de baixíssima
[50] audiência – e ainda tem de passar pelo
vexame de uma pergunta que o embaraça e à
qual não sabe responder. E então ele me
olha. Vocês dirão que não, que é para a
câmera que ele olha; aparentemente é isso;
[55] mas na realidade é a mim que ele olha, sabe
que, em algum lugar, diante de uma tevê,
estou a fitar seu rosto atormentado, as
lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu
olhar ele procura a resposta ........ pergunta
[60] da apresentadora: você gosta de rock? Você
gosta de mim? Você me perdoa? – mas aí
comete um engano mortal: insensivelmente,
automaticamente, seus dedos começam a
dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do
[65] velho roqueiro. Seu rosto se ilumina e ele vai
dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto
quanto ele, mas nesse momento – zap –
aciono o controle remoto e ele some. Em seu
lugar, uma bela e sorridente jovem que está –
[70] à exceção do pequeno relógio que usa no
pulso – nua, completamente nua.
Adaptado de: SCLIAR, M. Zap. In: MORICONI, Í. (Org.) Os cem melhores contos brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 547-548.
Assinale a afirmativa correta acerca dos usos das formas verbais no texto e dos seus sentidos.
O emprego de temos (l. 01) faz referência ao passado em que o narrador-personagem e sua mãe viveram a experiência de possuir uma televisão com controle remoto.
O emprego de gostaria (l. 09), no futuro do pretérito, faz referência ao desejo do narradorpersonagem de ganhar mensalmente muitos dólares, assim como as muitas vezes em que troca os canais da televisão.
Os empregos de Trata-se (l. 11-12) e indica (l. 13) fazem referência ao presente em que o narrador-personagem apresenta a sua opinião sobre a pretensão e a disposição de sua mãe.
Os empregos de sofre (l. 15) e sofreu (l. 15), no presente e no pretérito, fazem referência, respectivamente, ao presente e ao passado, momentos em que o narrador-personagem vive com sua mãe.
A forma verbal falando (l. 30) revela a ação de falar do pai do narrador-personagem no passado em que o narrador-personagem brincava de trocar os canais da televisão com controle remoto.