[1] Mia Couto: “O português do Brasil vai dominar”
[2]O romancista moçambicano afirma que o poder que o país tem de exportar cultura está contagiando
[3]todos os países de língua portuguesa
[4]A língua portuguesa está se transformando, muito por causa do papel das nações emergentes
[5]lusófonas da África. Nesta entrevista exclusiva a ÉPOCA, concedida em São Paulo, o escritor
[6]moçambicano Mia Couto, de 59 anos, diz que, apesar da renovação de linguagem que a África
[7]apresenta hoje, o Brasil reúne condições para se tornar a nação dominante do ponto de vista cultural
[8]e linguístico. Em relação aos países africanos, Couto diz que é preciso distinguir entre independência
[9]e descolonização – e que a África ainda não enfrentou o segundo termo. Para ele, o Brasil serviu
[10]como modelo para a formação da identidade nacional das nascentes nações lusófonas da África,
[11]mas pelo lado da mistificação, o que se esgotou rapidamente. Ele afirma que o Brasil virou as costas
[12]para a África.
[13]
[14]ÉPOCA – O uso do português em várias nações gerou diferenças de vocabulário e uso. O
[15]português está se transformando a ponto de se desfigurar?
[16]Mia Couto – O português é uma língua viva, não ________ ela seja especialmente diferente.
[17]Mas ela viveu essa coisa que se chama Brasil. Vive a África que está se apropriando dela com cinco
[18]países africanos que o fazem de modo diverso. É evidente que é preciso um cuidado para que a
[19]língua continue com uma identidade e um fundamento. As diferenças do português em vários países
[20]não são sentidas como um problema, salvo um grupo de intelectuais conservadores do Brasil e
[21]de Portugal que tem um certo gosto de se apropriar da pureza da língua. De resto, existe nos países
[22]lusófonos até um gosto de visitar essas diferenças. O que está acontecendo de forma inelutável é
[23]que a variante brasileira será dominante. O português do Brasil vai dominar.
[24]
[25]ÉPOCA – ________?
[26]Couto – Por causa do tamanho do Brasil e da capacidade que o país tem de exportar a si
[27]próprio, por via da novela de televisão. Há coisas que estamos pegando de vocês, brasileiros, que
[28]vocês nem notam. É o caso da expressão “todo mundo”. É uma expressão típica brasileira. Nos
[29]outros países dizemos “toda gente”. Mas hoje “todo mundo” é comum em Moçambique. Outra
[30]palavra é cambalacho... Deve ser uma expressão africana.
[31]
[32]ÉPOCA – “Cambalacho” é um termo do lunfardo, da gíria portenha, que incorporamos... É como
[33]“bacana’, do lunfardo argentino. Há uma troca. Eu lamento que não saibamos mais sobre as formas
[34]de falar da África. O Brasil exporta, mas não sabe absorver o que vem de fora.
[35]Couto – O Brasil quis fazer uma batalha dentro da própria língua para se tornar independente
[36]de Portugal. Houve a afirmação de uma identidade própria que se expressa na língua. O Brasil sofre
[37]do peso de seu próprio tamanho. Sofreu um processo autocêntrico, que agora está sendo repensado
[38]e está mais propenso a escutar aquilo que vem de Moçambique, Angola e Timor Leste. Ele tem
[39]muita coisa da África, mas é antigo. Agora o país importa o vocabulário do Brasil. Nós, africanos,
[40]temos que ser mais ativos e mais criativos nessa troca com o Brasil.
[41]
[42]ÉPOCA – Na palestra que o senhor fará no Brasil, o senhor chama atenção para o perigo de o
[43]pensamento se fechar em si mesmo. Como mantê-lo aberto?
[44]Couto – As fronteiras são vitais, todo organismo cria seus próprios limites. As fronteiras na
[45]natureza são feitas para intercambiar. Mas na civilização as fronteiras são feitas para fechar, para
[46]enclausurar. A grande aprendizagem nossa é nos manter em uma fronteira que crie pontes. O
[47]grande problema hoje é que as fronteiras criadas entre culturas, civilizações e povos nascem para
[48]fechar. As fronteiras são construídas a partir do medo do outro, do desconhecido. O outro é
[49]apresentado como uma ameaça, aquele que tem uma outra política, uma outra religião.
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[51]ÉPOCA – O medo é também um problema político? Erguer fronteiras – políticas, culturais,
[52]linguísticas e espirituais – é uma necessidade humana?
[53]Couto – É uma necessidade humana, mas não da maneira como fazemos. Tivemos outras
[54]maneiras. Há culturas de hoje que são abertas, feitas para o convívio, para a partilha. Na África,
[55]muitas dessas fronteiras são vivas. As fronteiras se fecham às vezes. O fato de serem países em
[56]que o Estado homogêneo e todo-poderoso não existe torna as fronteiras ávidas de deixarem de ser
[57]fronteiras. É uma condição diferente da dos países europeus, árabes, asiáticos e nos Estados
[58]Unidos. O medo hoje é bem distribuído, numa narrativa que contaminou tudo.
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[60]ÉPOCA – ________ a Europa está caminhando na direção da exclusão do imigrante e de sua
[61]transformação em mão de obra?
[62]Couto – Isso acontece como uma maneira de ocultar os problemas internos que essas
[63]sociedades têm. É uma forma de escamotear os conflitos internos desses universos. Existem razões
[64]que tendem a culpar o outro, sempre o estranho. É como as famílias que recomendam às crianças
[65]que não falem com estranhos. Quando, na realidade, as grandes violências são cometidas dentro da
[66]casa. Essa versão começa a ser inculcada desde a infância.
Disponível em: <http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/04/bmia-coutob-o-portugues-do-brasil-vai-dominar.html>. Acesso
em: 20 abr. 2014, às 13h48min (fins pedagógicos).
O entrevistado apresenta, como justificativas para a afirmação de que “o português do Brasil vai dominar”,
a quantidade de falantes da variante brasileira e a força das novelas de televisão.
a ausência de um grupo de falantes tão apaixonado pelo idioma quanto os brasileiros.
a maior importância econômica do Brasil no cenário mundial em relação a Portugal.
o fato de hoje não haver uma referência para a língua portuguesa no mundo.
a inexistência de uma língua portuguesa bem falada e bem escrita no mundo.