TEXTO
Não se zanguem
[1] A cartomancia entrou decididamente na vida
nacional.
Os anúncios dos jornais todos os dias
proclamam aos quatro ventos as virtudes
[5] miríficas das pitonisas.
Não tenho absolutamente nenhuma ojeriza
pelas adivinhas; acho até que são bastante
úteis, pois mantêm e sustentam no nosso
espírito essa coisa que é mais necessária à
[10] nossa vida que o próprio pão: a ilusão.
Noto, porém, que no arraial dessa gente que
lida com o destino, reina a discórdia, tal e qual
no campo de Agramante.
A política, que sempre foi a inspiradora de
[15] azedas polêmicas, deixou um instante de sê-lo
e passou a vara à cartomancia.
Duas senhoras, ambas ultravidentes,
extralúcidas e não sei que mais, aborreceram
se e anda uma delas a dizer da outra cobras e
[20] lagartos.
Como se pode compreender que duas
sacerdotisas do invisível não se entendam e
deem ao público esse espetáculo de brigas tão
pouco próprio a quem recebeu dos altos
[25] poderes celestiais virtudes excepcionais?
A posse de tais virtudes devia dar-lhes uma
mansuetude, uma tolerância, um abandono
dos interesses terrestres, de forma a impedir
que o azedume fosse logo abafado nas suas
[30] almas extraordinárias e não rebentasse em
disputas quase sangrentas.
Uma cisão, uma cisma nessa velha religião de
adivinhar o futuro, é fato por demais grave e
pode ter consequências desastrosas.
[35] Suponham que F. tenta saber da cartomante X
se coisa essencial à sua vida vai dar-se e a
cartomante, que é dissidente da ortodoxia, por
pirraça diz que não.
O pobre homem aborrece-se, vai para casa de
[40] mau humor e é capaz de suicidar-se.
O melhor, para o interesse dessa nossa pobre
humanidade, sempre necessitada de ilusões,
venham de onde vier, é que as nossas
cartomantes vivam em paz e se entendam
[45] para nos ditar bons horóscopos.
(BARRETO, Lima. Vida urbana: artigos e crônicas. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.)
Observando com atenção a linguagem empregada na crônica de Lima Barreto, é correto afirmar que ela revela fundamentalmente
o uso da ironia como um recurso discursivo para satirizar o ofício da cartomancia.
o uso de expressões e termos linguísticos próprios do registro formal culto da escrita da língua para se adequar ao gênero crônica.
o emprego de um léxico arcaico para mostrar o caráter pomposo do estilo do autor.
a utilização de conselhos e admoestações para resolver problemas cotidianos, como as brigas entre cartomantes.