Os seus segredos estão por um fio
[1] Aliás, nem mesmo por um fio eles estão. Eles escapam de qualquer jeito, vazam pelas
redes que não têm fio nenhum, essas a que aprendemos a chamar de wireless. Os seus
segredos, prezado leitor, voam soltos pelo ar. E pelo vácuo.
Não conte para ninguém, mas, se ainda acredita que pode resguardar sua valiosa
[5] privacidade, bem, é melhor que você fique sabendo de um segredo terrível: a intimidade de
cada um de nós já é quase de domínio público. Não olhe agora, mas estão vigiando você,
assim como espionam todo tipo de gente, em todas as partes do mundo. Você quer exemplos?
Lá vão três:
1. O vetusto Times de Londres acaba de ser processado sob a acusação de ter violado a
[10] conta de e-mail de Richard Horton, um policial que mantinha um blog anônimo, que assinava
apenas com o pseudônimo de NightJack. Segundo o processo, que corre desde a semana
passada, um repórter do Times, em 2009, invadiu ilegalmente a correspondência eletrônica de
Horton e, por meio desse crime, descobriu e revelou indevidamente a identidade do blogueiro,
nas páginas do respeitável Times. Como a ação ainda não foi julgada, é cedo para saber se a
[15] Justiça britânica dará ou não dará razão a Horton. Mas não é prematuro dizer que esse
processo vem complicar um pouco mais a situação do dono do jornal, o magnata Ruppert
Murdoch. A imagem de Murdoch já tinha sido destroçada em 2011, no bojo de outro
escândalo, este envolvendo o tabloide sensacionalista News of the World, também de sua
propriedade. Ficou demonstrado que o News of the World mandara grampear ilegalmente nada
[20] menos que 4 mil correios de voz de celulares. O vexame obrigou Murdoch a fechar as portas
do tabloide. Foi um trauma, tanto para Murdoch quanto para qualquer um que acreditasse na
inviolabilidade de sua vida íntima. Agora, o rastro de vergonha se aproxima da reputação do
Times. Pior para todo mundo.
2. Assim como os jornalistas sem escrúpulos, os arapongas sem limites também
[25] devassam a rotina de quem quer que seja, às vezes a serviço de cônjuges desconfiados,
outras vezes sob as ordens de governantes autoconfiantes demais. Seja em Londres, seja em
São Paulo, seja no Distrito Federal. O rentável negócio da futrica está cada dia mais fácil,
graças à falta de caráter e ao excesso de novíssimas traquitanas tecnológicas.
3. A toda hora, pipocam debates sobre como os dois gigantes da internet, o Google e o
[30] Facebook, armazenam dados pessoais de seus clientes para depois usá-los em proveito dos
anunciantes. Agora mesmo, em meados de abril, o senador americano Al Franken, democrata
de Minnesota, encarregado de uma investigação sobre a privacidade dos cidadãos, afirmou
que os modelos de negócios das duas empresas são inteiramente baseados na venda dos
dados dos usuários. E arrematou: “Você não é cliente dessas companhias; você é o produto
[35] que elas vendem”. Claro que o Google se defende com bons argumentos, bem como o
Facebook. Este, por sinal, prometeu, há pouco mais de uma semana, que vai informar seus
usuários, em detalhes, sobre os dados que coleta a respeito de cada um deles. Veremos.
Não vamos aqui prejulgar o Google, o Facebook, o Times. Eles têm direito de se explicar
e talvez não tenham culpa de nada. Não prejulguemos nem mesmo os arapongas, que agem
[40] no escuro, feito ratos. Até eles têm direito de defesa. Isto posto, não lutemos mais contra
o óbvio: a intimidade não é mais tão íntima como era no passado.
Atualmente, escancarar o que antes acontecia entre quatro paredes virou uma febre
coletiva, esporte planetário, tanto nos reality shows quanto nas redes sociais. Mas a coisa não
ficou só nisso. No embalo da cultura exibicionista, as empresas e os governos desenvolveram
[45] técnicas dissimuladas para capturar informações minuciosas sobre o público para ganhar
dinheiro – e voto – com elas. Sim, a plateia se embriaga em devassar a devassidão. É o que
ela deseja. Mas o poder (econômico ou político) foi além desse desejo e começou a faturar em
cima.
Parece uma bobagem desimportante, mas não é. Uma das bases da democracia pode
[50] estar ameaçada. O que está se dissolvendo, pelos fios e pelo ar, é o direito à privacidade.
Fiquemos atentos. Nas ditaduras, a privacidade não existe – e o Estado é perfeitamente
opaco. Mas, na democracia, o Estado tem a transparência como dever – e a vida íntima dos
cidadãos é protegida por lei. É por isso que o voto é secreto. Alguma coisa está fora de lugar
quando nossa intimidade vai assim, como tem ido, para o espaço.
(BUCCI, Eugênio. Os seus segredos estão por um fio. Publicado em 19/04/2012 e atualizado em 27/04/2012. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/opiniao/eugenio-bucci/noticia/2012/04/os-seus-segredos-estao-porum- fio.html> Data de acesso: 09/09/2012)
Assinale a alternativa em que o verbo TER está empregado segundo o padrão culto da língua:
“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” (Gonçalves Dias)
“Tinha uma pedra no meio do caminho” (Carlos Drummond de Andrade)
“Tem certos dias em que eu penso em minha gente” (Chico Buarque de Holanda)
“Tem gente que não sabe amar” (Renato Russo)
“Em Pasárgada tem tudo, é outra civilização” (Manuel Bandeira)