Leia com atenção dois fragmentos de Lucíola, de José de Alencar.
Se tivesse agora ao meu lado o Sr. Couto, estou certo que ele me aconselharia para as ocasiões difíceis uma reticência. Com efeito, a reticência não é a hipocrisia no livro, como a hipocrisia é a reticência na sociedade?
Sempre tive horror às reticências; nesta ocasião antes queria desistir do meu propósito, do que desdobrar aos seus olhos esse véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas da época, aplaca todos os escrúpulos, e que em minha opinião tem o mesmo efeito da máscara, o de aguçar a curiosidade. (p.253-254)
Quando a mulher se desnuda para o prazer, os olhos do amante a vestem de um fluido que cega; quando a mulher se desnuda para a arte, a inspiração a transporta a mundos ideais onde a matéria se depura ao hálito de Deus; quando porém a mulher se desnuda para cevar, mesmo com a vista, a concupiscência de muitos, há nisto uma profanação da beleza e da criatura humana, que não tem nome.
É mais do que a prostituição: é a brutalidade da jumenta ciosa que se precipita pelo campo, mordendo os cavalos para despertar-lhes o tardo apetite. (p. 258)
ALENCAR, José de. Lucíola. Ficção completa e outros escritos, vol 1. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965.
Considere as afirmativas abaixo:
1. A estratégia narrativa de Lucíola superpõe, entre o real e o ficcional, três figuras autorais: José de Alencar, o escritor do romance; Paulo, o autor das cartas em primeira pessoa; G.M, a destinatária que as organiza em forma de livro, atribuindo-lhe o título.
2. Apesar de situado no romantismo brasileiro, Lucíola inaugura o naturalismo na literatura brasileira ao explicar a sensualidade e a prostituição da protagonista como consequência do meio em que vive: a sociedade degradada da Corte no ano de 1855.
3. O grande amor de Paulo por Lúcia faz com que ele conheça profundamente os sentimentos e pensamentos da amada, gerando em alguns momentos uma oscilação entre a narração em primeira pessoa e a narração onisciente.
4. Paulo é ao mesmo tempo personagem do acontecimento passado e narrador do relato presente. A distância de seis anos possibilita comentários, conclusões e reflexões, deixando clara a diferença temporal entre viver e narrar o vivido.
Assinale a alternativa correta.
Somente as afirmativas 2 e 3 são verdadeiras.
Somente as afirmativas 1 e 4 são verdadeiras.
Somente as afirmativas 3 e 4 são verdadeiras.
Somente as afirmativas 1, 2 e 3 são verdadeiras.
Somente as afirmativas 1, 2 e 4 são verdadeiras.
Nesta questão, avaliam-se algumas características estruturais de Lucíola, analisando sua autoria e sua forma de narração. A afirmativa 1 descreve corretamente a sobreposição que ocorre entre o autor real (José de Alencar), o narrador Paulo (que escreve as cartas) e G.M., que recebe e organiza essas cartas em livro. Já a afirmativa 4, ao dizer que Paulo retrata acontecimentos do passado e, seis anos depois, relata e reflete sobre eles, tem fundamento na própria estrutura de Lucíola, em que o personagem-narrador coloca distância temporal entre o que viveu e o momento de narrar. Por outro lado, a afirmativa 2 está equivocada ao associar Lucíola ao naturalismo (pois a obra faz parte do Romantismo), e a afirmativa 3 supõe um tipo de onisciência que não é efetivamente adotado na narrativa, pois os pensamentos de Lúcia não são apresentados de fora, mas sim deduzidos e reinterpretados pelo próprio Paulo, o que não chega a configurar onisciência na estrutura narrativa. Dessa forma, as corretas são 1 e 4, o que corresponde à alternativa (B).
Lucíola é um romance de José de Alencar, caracterizado por ser narrado em primeira pessoa, sendo Paulo o personagem-narrador. O autor brinca com a ideia de um remetente e um destinatário, estruturando a narrativa em forma de cartas. O distanciamento temporal entre o momento vivido e o momento de narrar permite reflexões mais maduras e análises do que ocorreu. Importante perceber que, apesar de temas que poderiam sugerir determinismo (como a prostituição e o meio social), a obra permanece dentro do Romantismo brasileiro, não sendo considerada naturalista.